E Donald Trump continua à solta. O ex-presidente inventou que seria indiciado nesta terça (21), convocou arruaças, custou horas extras à polícia de Nova York, mas o painel de jurados que teria recomendado um processo criminal contra ele cancelou a reunião marcada para esta quarta (22), quando se esperava que uma decisão fosse anunciada.
Um dos clichês mais surrados do anedotário da Justiça americana reza que "um grande júri é capaz de indiciar até um sanduíche de presunto".
A frase foi cunhada por um juiz perturbado pela facilidade com que a Justiça passava a responsabilidade para grandes júris —painéis de juízes populares que não têm poder de julgamento, mas avaliam provas e recomendam a promotores que avancem com um processo criminal.
A preferência de Trump é por gordurosos Big Macs e baldes de galinha à milanesa do Kentucky Fried Chicken. Mas a fumaça da fritura judicial do republicano, que pode se tornar o primeiro ocupante da Casa Branca indiciado na história, penetra narinas em Nova York e Washington.
Sinais intensos de fumaça vieram da capital na noite de terça, quando um juiz decidiu que os promotores da equipe do conselheiro especial Jack Smith têm argumentos para indicar que o ex-presidente cometeu crime ao mentir para seus advogados, levando a declarações falsas sobre os documentos federais que ele levou para Mar-a-Lago, na Flórida. Isto abre o caminho para um dos advogados de Trump testemunhar sem a cobertura do privilégio do segredo do cliente.
Em 2011, o ex-pré-candidato democrata John Edwards foi preso e indiciado por pagar com doações as contas de uma mulher com quem tinha tido uma filha em segredo, na Carolina do Norte. Ele acabou absolvido, graças à simpatia de jurados que acomodaram o impulso do político de esconder sua roupa suja.
Em Nova York, um possível indiciamento de Trump por um crime que não é tão incomum passa pela encruzilhada da política local com a Justiça. Espectadores da série Billions tiveram oportunidade de ver como um poderoso promotor nova-iorquino, vivido por Paul Giamatti, sofre de indignação seletiva com os poderosos.
O caso se destaca por envolver o primeiro negro eleito promotor pela ilha de Manhattan. Alvin Bragg, no cargo havia 15 meses, atravessou sua carreira sem se destacar por notável ambição política. Ele investigou e multou a Fundação Trump, um laranjal privado da família.
Bragg se elegeu numa onda de reação contra os abusos punitivos da Justiça criminal que recaem de forma desproporcional em negros. Mas veio a pandemia, a morte de George Floyd, a explosão de protestos e o aumento da criminalidade. E Bragg se tornou alvo dos republicanos.
Foi criticado por hesitar em levar a investigação de Trump adiante, em seguida criticado por retomá-la. Se ele se tornar o primeiro promotor da história a obrigar um presidente a ir carimbar suas impressões digitais, não vai assumir o papel numa posição de força política.
É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.