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08/08/2022 às 08h59min - Atualizada em 08/08/2022 às 08h59min

Marcha Zumbi: O caminho das cotas

Adriano Oliveira
Meio

Por Adriano Oliveira

A Lei de Cotas completa dez anos de sua promulgação neste mês. Na letra fria, ela reserva 50% das vagas em instituições federais de ensino superior para alunos que completaram todo o ensino médio na rede pública, subdivididas entre pessoas negras, indígenas, de baixa renda e com deficiência, de acordo com o proporcional que cada grupo representa em suas unidades federativas.

O caminho para a criação da política pública remonta a uma série de episódios protagonizados pelo movimento negro. Foi uma conquista de décadas de mobilização e pressão. Um marco foi uma manifestação na capital federal, em 20 de novembro de 1995. A data marcava os 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, símbolo da resistência e da luta contra a escravidão e principal liderança do Quilombo dos Palmares, um território livre em Pernambuco.

Era uma segunda-feira de nuvens carregadas na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, quando 30 mil pessoas se reuniram na Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida. O ato foi organizado por diferentes movimentos negros e da sociedade civil, com a presença de lideranças como Sueli Carneiro, Benedita da Silva, Maria Isabel da Silva e Deise Benedito. O grito era claro: contra o racismo, o preconceito racial e a falta de políticas públicas para aquela população. No mês anterior, os organizadores do evento tinham distribuído 400 mil exemplares do Jornal da Marcha, convocando grupos religiosos e culturais, famílias, empregadas domésticas e outros coletivos que poderiam ser afetados pela mobilização.

“Não esperava que um dia ia viver o suficiente para ver Brasília ocupada por nós”, disse uma senhora negra de cabelos brancos, óculos de armação em acetato transparente e brincos longos que adornavam até as proximidades dos ombros, durante a passeata. Para a marcha, saíram delegações de 20 estados, viajando nas condições mais adversas — em alguns casos por três, quatro dias, em ônibus que quebraram pelo caminho e só puderam chegar ao evento nos momentos finais, já no início da noite.

A concentração começou às 10h em frente ao Gran Circo Lar, um espaço de eventos demolido em 1999, próximo à rodoviária de Brasília. Seguiu em uma caminhada de dois quilômetros até o Congresso Nacional. Os participantes ficaram concentrados em frente à rampa, onde foi montado um palanque para os shows de Milton Nascimento e a banda Olodum, que teve início às 20h30. Os diversos grupos chegaram à capital com tambores, berimbaus, fazendo rodas de capoeira, gritando palavras de ordem e levantando cartazes cobrando por reparação racial. Antes dos shows, o Congresso realizou a primeira sessão solene da história dedicada a homenagear Zumbi dos Palmares e ouvir a população negra brasileira. No púlpito, homens e mulheres se revezaram para reivindicar direitos, relembrar a história de escravização e de luta, e exigir políticas compensatórias, que incluíssem a negritude no âmbito social, político, cultural e econômico.

Após a marcha, cerca de 30 integrantes das lideranças se reuniram com o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Entregaram-lhe um documento com o diagnóstico das discriminações sofridas pela negritude do país e a proposta do Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial, com um conjunto de ações e políticas em diversas áreas. Naquele dia, o presidente assinou um decreto, criando um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) com a participação negra. Entre as principais tarefas, estava o combate ao preconceito racial e o desenvolvimento de políticas públicas que valorizassem a comunidade afro-brasileira em variados aspectos, como trabalho, saúde e educação.

Era o início do reconhecimento do Estado brasileiro de que havia injustiças a serem reparadas com essa parcela da população. Em julho do ano seguinte, no auditório do Palácio do Planalto, organizado pelo Ministério da Justiça, o seminário “Multiculturalismo e Racismo: O Papel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos” trouxe um importante debate para a formulação das políticas de ação afirmativa, que seriam desenvolvidas anos depois. Um mês antes, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) realizava o seminário “Ações afirmativas: estratégias antidiscriminatórias?”, que também fomentou o debate. Em 1996, o governo FHC instituiu o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), que também estabelece direitos para a população negra.

As primeiras cotas

Esses passos foram fundamentais para pavimentar o caminho das primeiras reservas de cotas em universidades brasileiras. Em 2002, a criação do Programa Nacional de Ações Afirmativas e do Programa Diversidade na Universidade possibilitou que universidades criassem vagas destinadas a pessoas de grupos sociais menos favorecidos socialmente, como negros e indígenas. Foi no ano seguinte que a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) se tornou a primeira instituição pública de ensino superior a adotar o sistema de cotas, puxando o filão para outras, como a Universidade de Brasília (UnB), em 2004, que se tornou a primeira instituição federal a adotar o modelo. A lei federal 12.288, já no final do governo Lula, criou o Estatuto da Igualdade Racial, e foi um novo passo para que as ações afirmativas se tornassem realidade na educação do ensino superior em todo o país. Mas o capítulo decisivo começou a ser escrito pelas mãos dos ministros e ministras do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em abril de 2012, a Corte analisou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, movida pelo partido Democratas. O DEM alegava ser inconstitucional o sistema de reserva de vagas com base em critério étnico-racial. O Supremo julgou, por unanimidade, que as cotas aplicadas pela UnB eram constitucionais. Não só. Elas deveriam ser utilizadas como “modelo” por outras instituições de ensino, com o objetivo de superar a desigualdade histórica entre negros e brancos. Em seu voto, o único ministro negro da Suprema Corte na época e o terceiro da história do STF, Joaquim Barbosa, foi breve. Seguindo o voto do relator, Ricardo Lewandowski, Barbosa lembrou que seu ponto de vista, favorável às cotas, já era conhecido, por já ter escrito um livro sobre o tema.

Passados pouco mais de três meses do julgamento no Supremo, os senadores aprovaram, de forma simbólica, a Lei de Cotas. Ficou a cargo da presidente Dilma Rousseff sancioná-la.

PL da Permanência

Um dispositivo da lei diz que as cotas devem ser revistas uma década após sua implementação. Para garantir que a política de ação afirmativa seja mantida, o Projeto de Lei 5384/2020, de autoria da deputada federal Maria do Rosário (PT/RS), prevê a permanência das cotas de maneira contínua, sem a necessidade de revisão periódica. O PL estava na pauta de votação pela Câmara dos Deputados nesta semana. Foi retirado a pedido da própria autora, que temia pela revogação do direito às cotas raciais em alguma manobra de seus colegas. "Quando nós chegamos no plenário, começamos a perceber que essa votação poderia abrir espaço para setores retrógrado. Temos um governo que se pauta e age, muitas vezes, com viés racista”, afirmou a deputada.

Ela espera agora um momento oportuno para que o texto seja votado e aprovado sem modificações. O receio se dá pela formação atual da Casa, que ficou mais conservadora após a última eleição. Em 2010, na legislatura da promulgação da Lei de Cotas, foram eleitos 190 deputados mais à direita do espectro ideológico. Hoje, essa ala conta com 301 parlamentares, eleitos na onda bolsonarista de 2018.

A resistência à continuidade das cotas não se justifica. Muitos intelectuais, políticos e personalidades que eram contrários já reviram suas posições. Ao longo das últimas décadas, estudos têm sido realizados para aferir os resultados trazidos pelas políticas de cotas. Um que já se mostrou evidente é o do volume. Em 2003, quando a UnB adotou sua política de ação afirmativa, apenas 4,3% dos universitários se autodeclararam pretos, pardos ou indígenas. Em 2019, o percentual chegou a 48%.

Levantamentos recentes também mostraram que ações afirmativas que não contemplam a questão racial não foram eficientes em trazer alunos negros para o espaço acadêmico. Pesquisadores da própria UnB e da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, descobriram que as cotas raciais elevaram a presença de estudantes pretos e pardos em 20%, enquanto a exigência de apenas ter estudado em escolas públicas trouxe 1% desse grupo no mesmo período. Além disso, o critério racial foi responsável pelo crescimento de 24,3% de alunos pobres nas instituições de ensino, contra 14,6% dos advindos apenas como critério de ter estudado em escolas públicas. Enquanto isso, uma pesquisa Datafolha mostrou que metade dos brasileiros é favorável às cotas raciais; apenas 34% são contra.


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