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31/07/2022 às 08h05min - Atualizada em 31/07/2022 às 08h05min

O bicentenário roubado

Pedro Doria
Meio

Por Pedro Doria

Toda manhã, Epitácio Pessoa pedia aos cozinheiros do Palácio do Catete que lhe trouxessem um pouco de carne crua e um prato. Ele mesmo picava com uma faca, bem miúda, espalhava por cima então um pó medicinal e punha num canto da porta para sua cadelinha. Ninon. A bichinha viveu entre seus pés em todos os três anos e tanto de seu governo. Às vezes ficava animada que só, sobre as duas patas traseiras, apoiada nas pernas do dono. Viviam um caso de amor afetuoso, o presidente e Ninon. Mas Epitácio não era para ter chegado tão longe. Era paraibano, e na Primeira República os presidentes vinham de São Paulo ou de Minas. Era esse o acordo. E Epitácio já havia alcançado ao ápice da carreira mais de uma vez. Um dos mais importantes senadores e até ministro do Supremo Tribunal Federal. Só que Rodrigues Alves, o velho paulista eleito para um segundo mandato no Catete, foi pego pela pandemia da Gripe Espanhola, morreu antes de tomar posse em 1919, e uma eleição especial teve de ser organizada às pressas. Não houve tempo de composição de acordo entre paulistas e mineiros a respeito de quem era a vez, o velho liberal Rui Barbosa logo saiu candidato e na pane os conservadores do regime acharam por bem combinar um nome terceiro que não assustasse ninguém. Veio Epitácio com seu topete, o bigode farto de arcos para cima, grisalho aos 54. Um homem paciente, calmo, que logo botou em ação ao menos uma das pautas de Rui. Pela primeira vez, o ministro da Guerra seria um civil. Foi um presidente com uma missão: comunicar ao mundo que, em seus trinta anos de existência, a República brasileira era um caso de sucesso. Faria isso com uma festa. Um centenário. Em 7 de setembro do seu último ano de mandato. 1922.

A diferença entre a festa do centenário e a do bicentenário da independência começa aí. A Primeira República tinha a intenção de celebrar seu regime. O presidente Jair Bolsonaro quer enterrar o regime da Nova República.

Quando Epitácio Pessoa chegou ao poder, o Brasil estava num ponto chave de sua história — e os políticos viam isso com clareza parcial. Tinham orgulho do que haviam construído. Na República, o país começou a se industrializar e formar seu Estado, com a contratação de funcionários públicos para diversos setores. As cidades cresceram. A visão era parcial porque não conseguiam perceber que o regime estava, também, se esgotando.

Um novo Brasil

Ao fim do império, o que havia eram centros urbanos miúdos, cheios de ruelas que serpenteavam estreitas, pavimentadas com pés de moleque e que cheiravam mal, a bosta de cavalo. Muitos e muitos sobrados com loja no piso e apartamento no segundo andar marcavam a paisagem, além de alguns palacetes aqui e ali, onde moravam quando estavam nas capitais os grandes fazendeiros com seus títulos de nobreza. De acordo com o censo de 1890, primeiro ano da República, São Paulo tinha 65 mil habitantes e a capital, o Rio de Janeiro, 522 mil.

O Rio de 1920 já havia cruzado fazia anos a marca do milhão e, São Paulo, se aproximava dos 600 mil. A República fez São Paulo, enriqueceu São Paulo, decuplicou São Paulo. E as duas capitais começavam a se verticalizar, edifícios que passavam dos dez andares se espalhando no Rio do Centro e de Copacabana, em São Paulo o Edifício Sampaio Moreira já em obras. Em seu primeiro mandato como presidente, no ano de 1905, Rodrigues Alves havia inaugurado a avenida Central no Rio, atual avenida Rio Branco, um boulevard largo com jeito parisiense, iluminação elétrica em elegantes postes de ferro fundido. E, claro, havia os automóveis. Automóveis por toda parte, de donos particulares e táxis de aluguel, circulando com seus motoristas de boné e óculos protetor. Se o maior barulho da capital imperial era o tilintar dos sinos das igrejas a cada hora exata, agora eram os puc-puc-pucs constantes dos motores a combustão, as buzinas alertando os pedestres mais incautos a toda hora e as sinetas dos bondes elétricos deslizando pelos trilhos que cortavam as grandes ruas. No Império os homens usavam barbas espessas. Na República, cavanhaques leves e bigodes pontiagudos.

Circulavam nas duas metrópoles dezenas de jornais diários, matutinos e vespertinos, com artigos de opinião, debates acalorados, trocas de ofensa até. E revistas, muitas revistas, páginas coloridas com caricaturas dos políticos e personalidades, fotografias da sociedade, do futebol que já era popular, das festas. As livrarias eram muitas e todas cheias de livros de autores nacionais, alguns já celebridades. O Brasil não era ainda nenhuma Argentina, nunca havia sido, a Argentina sim era muito rica. Mas com as obras urbanísticas em curso no centro carioca naquele princípio de anos 20, o perfil da capital brasileira estava sendo transformado. Quem chegava do exterior de navio via uma cidade moderna, talvez até, ambicionavam aqueles presidentes brasileiros, uma cidade europeia.

Aquele princípio de década foi a primeira vez em que os políticos republicanos se sentiram realmente seguros da República. Não temiam mais a comparação com o Império. Acreditavam estar entregando um país tão melhor que os escassos monarquistas não ofereciam mais qualquer ameaça. Claro, alguns ainda circulavam com títulos de nobreza, mas era só uma excentricidade, uma vaidade ancorada no passado. Havia os nobres de verdade, como os Barões do Rio Branco e de Tefé, um o maior chanceler daquela República, o outro sogro do presidente Hermes da Fonseca. E os de mentira, como os condes Francesco Matarazzo e Paulo de Frontin, que haviam comprado seus títulos na Europa com a fortuna que fizeram no Brasil republicano.

Não houve sinal maior da segurança que sentia aquele regime do que a assinatura por Epitácio, em 1920, de um decreto suspendendo o degredo da família imperial. Era o início da celebração do centenário. E foi assim que Louis Philippe Marie Ferdinand Gaston d’Orléans, um velhinho de bengala, o cabelo ralo, o cavanhaque e o bigode tão brancos que pareciam algodão, voltou ao Rio de Janeiro logo no primeiro mês de 1921 e do transatlântico, já na Baía de Guanabara, não teria reconhecido a capital não fossem o Pão de Açúcar, o Corcovado ainda sem Cristo, e bem ao fundo os Dois Irmãos. Os outros velhinhos que o foram receber ainda dentro do navio vinham todos cheios de sorrisos, títulos de nobreza sem utilidade e saudades dos 30 anos passados desde o exílio. Por certo o perceberam, as costas curvadas daquele homem lhe haviam custado uns bons centímetros da altura que um dia tivera. Naqueles tempos passados, quando era general. O conde d’Eu, esse conde de verdade, havia deixado sua mulher, dona Isabel, na França. Ela não tinha mais saúde para aguentar a viagem. E ele trazia, consigo, os corpos dos sogros para que fossem enfim recolhidos à terra que um dia governaram. Dona Teresa e dom Pedro.

O filho do homem que havia feito a independência voltava para sua terra. Ou teria sido mesmo aquele Pedro que fizera a independência?

O sentido da independência

Festas desse tipo são políticas. Não têm como ser outra coisa. São, portanto, a construção de uma mensagem, de uma imagem — e, assim, a invenção de um jeito de ver a história.

O Brasil se tornou independente porque, num período de três décadas entre 1890 em 1920, a família real em Lisboa não deu mais conta de gerenciar os interesses das elites de Portugal, do Brasil e o poder econômico do Império Britânico. Movimentos independentistas pipocavam em todas as Américas, inspirados pelas ideias liberais do Iluminismo. O primeiro alerta foi a Inconfidência Mineira — a partir dali era questão de tempo para acontecer.

A Casa Real de Bragança viu como sua missão gerenciar o processo inevitável, até porque sua situação era muito distinta da inglesa. Os Estados Unidos se tornaram independentes, mas Londres não dependia economicamente dos EUA. Portugal dependia economicamente do Brasil. Quando o príncipe-regente dom João VI aportou no Rio, em 1908, vindo com a mãe enlouquecida dona Maria e o primogênito, dom Pedro, sua primeira missão foi distensionar a pressão econômica e cultural sobre os brasileiros. Abriu os portos para o comércio, implantou uma biblioteca, liberou a publicação de livros e jornais. A segunda missão foi começar a construir uma unidade brasileira — as diversas províncias eram governadas em grande parte de forma autônoma, com contato direto com Lisboa. Não havia realmente um governo central no Rio de Janeiro. Não havia uma ideia de Brasil — o que existia era a ideia de colônias portuguesas várias, cada qual com sua elite. Dom João tentou fazer com que o Rio se tornasse capital de todo o império, e isso foi possível no período em que os franceses de Napoleão Bonaparte controlaram o território português. Mas, em 1920, os Bragança viveram a ameaça de sofrer um golpe caso não voltassem. Dom João foi, dom Pedro ficou, enquanto Londres pressionava Portugal e Brasil por fora. A separação em duas nações, ambas sob comando Bragança, foi o pacto político possível que a Família Real conseguiu com ambas as elites, assinada em 12 de outubro de 1822.

Este é o real Dia da Independência do Brasil: o dia em que um documento separando politicamente os dois países foi assinado. 12 de outubro, 1822. Nas páginas da imprensa, em 1822, não há qualquer citação a qualquer coisa que tenha ocorrido em 7 de setembro, descobriu em 1995 a historiadora Maria de Lourdes Viana Lyra.

Sete de Setembro mítico nasceu em 1826. No acordo original de independência, ela havia sido registrada como uma conquista dos brasileiros. Na história que passou a ser contada quatro anos depois, virou uma concessão de dom João ao filho. A diferença entre o 12 de outubro e o 7 de setembro é que na data verdadeira a decisão partia da pressão das Câmaras de Rio, São Paulo e Minas. Às margens do Ipiranga, em setembro, num episódio que talvez nem tenha ocorrido, só quem estava era o príncipe. A independência de outubro foi uma imposição das elites brasileiras. A de setembro, fictícia, era uma declaração do príncipe herdeiro português que talvez ambicionasse reunir as duas nações novamente, ali na frente. Não deu.

Ao longo das décadas seguintes, a grande obra do Império foi inventar o Brasil. Dar unidade e identidade. A ideia de uma nação, de uma imagem comum, que nunca existiu no tempo da Colônia, foi forjada no século 19 com muito derrame de sangue.

Quando o grupo dominante da República tomou a decisão de celebrar o Centenário da Independência, em 7 de setembro de 1922, havia ali um novo sentido a se dar. O enriquecimento de São Paulo gerou uma leitura particular da história brasileira na virada do século 20. Os bandeirantes foram para o centro da maneira como se explicava a formação do Brasil. Se na colônia de verdade o Sudeste só virou relevante depois de descoberto ouro em Minas, na história que a República passou a contar bandeirantes — paulistas — foram os que desbravaram o país, dominaram seu território e impuseram suas fronteiras. Que a independência tivesse ocorrido em São Paulo, às margens do Ipiranga, ganhava novo sentido. Não aquele original, de ter sido uma decisão do príncipe. Outro. O país Brasil havia nascido em São Paulo.

Em 1922, a Primeira República construiu uma festa imensa com três objetivos simultâneos. O primeiro, fazer as pazes com o passado imperial, que não oferecia mais ameaça. O segundo foi transformar aquela numa festa paulista. O Rio era a capital, território neutro onde se encontravam para tomar suas decisões e governar políticos de todo o país. O Rio, a maior metrópole brasileira, era governo mas não governava, mal criava políticos próprios. Os políticos vinham de fora. E aquele regime era controlado, principalmente, pelos membros do Partido Republicano Paulista, com o apoio do Partido Republicano Mineiro. Pois a festa consolidaria a posição de São Paulo no centro da história nacional. E, enfim, surgia o terceiro propósito de vender ao mundo a ideia de que o Brasil era um país grande, moderno, pronto para brilhar e explodir no século 20. Não é à toa que 1922 é o ano em que ocorreu, também, a Semana de Arte Moderna. Em São Paulo. Que reafirmava a mesma mensagem: o Brasil cosmopolita, antenado com as vanguardas culturais e industriais europeias pronto para explodir e brilhar naquele século 20, nascia da capital paulista.

A forma da festa reafirmava a ambição cosmopolita daquele Brasil: seria uma Feira Mundial.

As feiras mundiais

A partir de meados do século 19, quando viagens internacionais de turismo ainda eram privilégio dos muitíssimo ricos mas a industrialização já estava a toda, os países começaram a organizar o que os americanos chamavam de Feiras Mundiais e, os franceses, de Exposições Universais. Londres fez uma, em 1851, Nova York seguiu em 1853, depois a Filadélfia, então Paris. A de Saint Louis, em 1904, marcou. Os países eram convidados a erguer prédios nas cidades sede para exibir o melhor de sua produção. Eram espetáculos da cultura e da inovação. Dom Pedro II viu o telefone pela primeira vez na Feira da Filadélfia, em 1876 — e assim o Brasil foi o segundo país do mundo a adotar a tecnologia. O Palácio Monroe, que foi a sede do Senado até a transferência da capital para Brasília, originalmente foi erguido pelo Brasil em Saint Louis como sede da sua exposição. Era uma iniciativa do primeiro embaixador brasileiro em Washington, Joaquim Nabuco, logo apoiada pelo chanceler, o Barão do Rio Branco. Ter um prédio bonito e chamativo — e o brasileiro foi premiado naquela feira — era uma das formas de países se venderem internacionalmente. Depois a construção foi transferida para o Rio como um dos grandes edifícios da nova capital. Este era outro hábito — erguer prédios luxuosos nas feiras mundiais e depois repatria-los. (Em geral, trazia-se a estrutura. O Monroe original foi feito em madeira nos EUA, apenas a cúpula e a estrutura metálica vieram para o Brasil, onde foi reerguido mais sólido.)

Essas exposições marcavam vividamente quem as assistia, tinham o poder de mexer com a imaginação. Por isso, serviam à demonstração de soft power para quem as sediava e para quem nelas se exibia. Geravam laços comerciais. Foi por ter assistido a algumas destas em sua juventude que Walt Disney inventou seus parques de diversão — o Epcot Center, em Orlando, tinha originalmente a intenção de ser uma feira mundial permanente.

O Centenário da Independência foi organizado como uma Feira Mundial — não havia maneira melhor para o país se vender. O prédio erguido pela França foi doado como presente para o Brasil e é, hoje, a sede da Academia Brasileira de Letras. O dos EUA foi por muito tempo a embaixada do país e, hoje, sedia no Rio a Escola Corcovado. O pavilhão português foi levado de volta a Lisboa. México, Bélgica, Japão — vários países tiveram suas sedes.

Aquilo com o que o regime não contava é que 1922 marcou, também, o início do fim da Primeira República. Epitácio teve de lidar com o levante dos tenentes do Forte de Copacabana meses antes da festa — um movimento que desaguaria na Revolução de 1930 e no golpe militar que derrubou o último presidente do Partido Republicano Paulista, Washington Luís. Getúlio Vargas também criaria seus próprios mitos de seu próprio regime, começando por chamar a Primeira República, ora, de República Velha em oposição ao seu Estado Novo. A imagem de Tiradentes passaria a ser mais celebrada como ideia de fundação do Brasil, tirando São Paulo do centro. Faria parecer, também, que a industrialização começou com ele — e não trinta anos antes.

Regimes se vendem, constroem suas imagens e propõem visões de país. Juscelino Kubitschek falou dos 50 anos em 5 e ergueu Brasília, em seu governo o país ganhou a primeira Copa do Mundo e chorou misérias pela derrota de Martha Rocha no prêmio Miss Mundo. Exportou a Bossa Nova como nosso jazz — e o mundo a comprou. Regimes se vendem internamente mas vendem, também, uma imagem externa que favoreça os elos comerciais.

O Bicentenário da Independência era uma oportunidade. Mas o Brasil tem hoje um presidente pequeno que só consegue enxergar relações internacionais pelo ângulo da relação pessoal e simpatia ideológica. Que só enxerga a festa como uma parada militar. Ou uma oportunidade para juntar seu público e, quem sabe, invadir um prédio público e assim, talvez, impedir uma eleição.


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