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04/04/2024 às 07h09min - Atualizada em 04/04/2024 às 07h09min

Opinião - Rodrigo Tavares: Como o último ditador português foi acolhido pelas elites brasileiras

Repudiado em Portugal, Marcello Caetano foi amparado pela elite intelectual, da conservadora à progressista

Rodrigo Tavares
Folhapress
Tanque no centro de Lisboa em 27 de abril de 1974 - AFP

 

Em algumas semanas o mundo da língua portuguesa celebrará os 50 anos do 25 de Abril, conhecido como a Revolução dos Cravos. Em 1974, Portugal conquistou a sua democracia, as suas ex-colônias africanas obtiveram a independência e o Brasil acolheu os ditadores depostos.

Mas, em vez de ficarem presos em Portugal, a Junta de Salvação Nacional, que assumiu as rédeas do país, negociou com o governo de Ernesto Geisel o degredo dos dois ditadores. António de Spínola e Francisco da Costa Gomes, presidentes da República entre 1974 e 1976, lideraram a negociação pelo lado português. Essa medida "chocou profundamente" o Partido Comunista Português.

Anos mais tarde, o próprio Marcello, já no Brasil, agradeceu a Spínola o relativo privilégio do exílio, longe da infâmia a que foi condenado em Portugal e do processo revolucionário em curso.

A escolha pelo Brasil veio do próprio Marcello Caetano. Como professor catedrático de direito, só por aqui poderia recuperar a sua carreira acadêmica. Miguel Caetano, filho de Marcello Caetano, disse à coluna que o seu pai sempre teve "uma forte relação acadêmica e institucional com o Brasil e uma afinidade com a cultura brasileira". Era "o sítio [local] certo para refazer a vida".

Depois de ter pousado no aeroporto de Viracopos, por exigência das autoridades brasileiras, e de ter pernoitado no hotel Hilton em São Paulo, Caetano parte para o Rio. Primeiro para um período de reflexão de duas semanas no Mosteiro de São Bento e depois para um apartamento no bairro do Flamengo, na rua Cruz Lima, 702, onde viveu até morrer, em 1980.

Ao contrário das expetativas, Caetano não fez política no Brasil. Não se entrelaçou com o governo militar. Não foi um pupilo do regime. A sua segurança não foi assegurada pela Polícia Militar. Não pisava os tapetes vermelhos do Palácio das Laranjeiras, residência do presidente da República durante as suas visitas ao Rio de Janeiro. Foram os intelectuais paulistas e cariocas que lhe deram a mão, como destaca a jornalista portuguesa Manuela Goucha Soares no livro "Marcello Caetano: o Homem que Perdeu a Fé", resultado de uma pioneira pesquisa de campo realizada no Rio de Janeiro em 2007.

À coluna Goucha Soares afirma que, logo à chegada, Caetano foi acolhido pelo jurista brasileiro Carlos Doria, que lhe abriu as portas de casa e o apoiou financeiramente. Vicente Rao (1892-1978), professor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, convidou-o a lecionar na USP. Mas Caetano se decidiu pelo Rio de Janeiro. A intermediação para ser acolhido no Mosteiro de São Bento foi feita pelo baiano Pedro Calmon (1902-1985), membro da Academia Brasileira de Letras e autor de cerca de 50 obras em história e direito, amigo de Caetano desde 1937. Na página 6 da ata do mosteiro, é possível ler a opinião cristã dos monges sobre o ditador português: "ganhamos um amigo," conta Goucha Soares.

No Rio, Caetano foi professor na Universidade Gama Filho e escreveu quatro livros, publicados por editoras brasileiras ("Depoimento", "Princípios Fundamentais do Direito Administrativo", "Direito Constitucional" e "Minhas Memórias de Salazar"). A universidade pagava-lhe um alto salário de dez mil cruzeiros, alugava-lhe um apartamento e concedeu-lhe um carro com motorista. Deu palestras acadêmicas por todo o país e foi homenageado pela intelectualidade brasileira. Foi Francisco Mauro Dias (1932-2011), ex-aluno de Caetano em Lisboa, a quem tratava por "mestre", e então professor de direito no Rio, que articulou o convite ao ditador português para lecionar na Gama Filho.

Quando chegou ao Brasil, no início, Caetano até se encolheu. Traduziu um livro sobre o barroco mineiro sob o pseudônimo José das Neves Alves e enviava a sua correspondência a amigos usando como remetente José das Neves ou José Alves, para não ser descoberto. Mas depois soltou-se. Passava fins de semana em Petrópolis, cuidava do seu bem-estar no parque das Águas de Caxambu, em Minas Gerais, visitava o Real Gabinete Português de Leitura e era um frequentador da tertúlia literária Sabadoyle, que se reuniu semanalmente entre 1964 e 1998 no apartamento do bibliófilo carioca Plínio Doyle, então diretor da Biblioteca Nacional. O Sabadoyle, uma espécie de Academia Brasileira de Letras alternativa, acolheu no número 62 da rua Barão de Jaguaribe escritores como Carlos Drummond de Andrade e Rachel de Queiroz.

O padrinho do debutante nos meios intelectuais e artísticos cariocas foi o romancista e progressista Clodomir Vianna Moog (1906-1988), também membro da Academia Brasileira de Letras. Sua filha, Ana Maria Moog, foi aluna de doutorado de Caetano. A vida de Marcello no Brasil está longe das descrições feitas por alguns historiadores portugueses que afirmam catarticamente que o último ditador português "sofria com o abandono e uma existência sem destino" e o Brasil era "um lugar de martírio." Caetano, de costas voltadas para Portugal, teve uma fecunda vida social no Brasil, sem desaprovações e alheio à política.

Drummond de Andrade descreveu o Sabadoyle como um "ponto de encontro de pessoas que não pretendem fazer qualquer negócio nem alterar o que quer que seja na ordem política do mundo –pessoas, enfim, descompromissadas com o utilitário, o rentável, a ambição política, a ânsia do poder". No Rio, como uma larva que se transforma em borboleta-caixão-de-defunto, uma espécie nativa do Brasil, Caetano deixou de ser um político e voltou a ser um intelectual.

O filho Miguel, que visitou o pai duas vezes no Rio, recorda um recém-adquirido impulso do pai para a afetuosidade. "Ele encontrou no Brasil muitas coisas que lhe deram um enorme prazer. Não estava deprimido. Foi muito bem recebido. As pessoas gostavam muito dele."

Com outros portugueses, também exilados políticos no Brasil, Caetano não manteve relações próximas. Américo Thomaz, a viver no modesto Hotel Miramar, em frente ao posto 6 em Copacabana, com a conta paga pela benemérita comunidade portuguesa carioca, teve uma vida de recato. O seu currículo militar não permitiu que se reerguesse profissional e financeiramente no Brasil. A relação de ambos era protocolar.

António de Spínola, que, descontente com o impulso comunista do 25 de Abril, orquestra, a 11 de março de 1975, um golpe falhado, também se refugiou no Brasil. Foi acolhido "calorosamente" por Carlos Lacerda (vide "Carlos Lacerda. A Vida de um Lutador", de John W. F. Dulles), mas manteve uma relação tensa com Marcello Caetano, como revela o filho Miguel. Nos diários de Marcello, na posse da família, Manuela Goucha Soares afirmou à coluna que nunca viu o nome de Spínola.

As relações eram próximas apenas com Baltazar Rebelo de Sousa, antigo ministro do Ultramar e governador-geral de Moçambique, que se exilou em São Paulo após a instauração da democracia em Portugal. Contrariando o que geralmente afirma o seu filho Marcelo Rebelo de Sousa, atual presidente da República, a família Sousa manteve, no Brasil, uma sã convivência com Caetano. "Eram amigos pessoais", relembra o filho Miguel. Baltazar visitava Marcello Caetano nos seus aniversários e falavam regularmente. Baltazar Rebelo de Sousa havia sido padrinho de casamento de Caetano.

Marcello Caetano estava mais interessado em se fincar na sociedade brasileira do que em carregar nos ombros as assombrações do passado. Era frequentemente convidado para reuniões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Brasileira de Letras. Entre os amigos mais próximos estava também o teatrólogo e escritor brasileiro Josué Montello (1917-2006) e o escritor e historiador Afonso Arinos (1905-1990), que se destacou pela autoria da Lei Afonso Arinos, contra a discriminação racial, em 1951.

Foi em meio a um convívio do Sabadoyle que Caetano teve o embrião de uma crise cardíaca que o fulminou no dia seguinte, 26 de outubro de 1980. O velório foi realizado no Real Gabinete Português de Leitura, na presença de cerca de meio milhar de pessoas que o homenagearam.

O presidente da comissão que redigiu o Código Civil de 2002, Miguel Reale (1910-2006), também fundador do Partido Popular Sindicalista e do Partido Social Progressista, louvou Marcello Caetano como "o maior mestre em direito administrativo da língua portuguesa."

Está enterrado no Cemitério São João Batista, na zona sul do Rio, coincidentemente ao lado de Nelson Rodrigues, por quem o ditador português não nutria muita estima, segundo Manuela Goucha Soares. Foi o dramaturgo que escreveu que "o inimigo é o que vai cuspir na cova da gente. Não há admiração mais deliciosa do que a do inimigo".

Todos os que no próximo dia 25 de abril celebrarem a Revolução dos Cravos, tratarão Marcello Caetano como um inimigo.

Rodrigo Tavares

Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

 

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