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04/11/2022 às 16h03min - Atualizada em 04/11/2022 às 16h03min

No dia em que Drummond completaria 120 anos, conheça poemas 'indispensáveis' do itabirano

Seleção foi feita por Maria Zilda Ferreira Cury, professora de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

g1
https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2022/10/31/no-dia-em-que-drummond-completaria-120-anos-conheca-poemas-indispensaveis-do-itabirano.ghtml

Nesta segunda-feira (31), dia em que Carlos Drummond de Andrade completaria 120 anos, o g1 convidou Maria Zilda Ferreira Cury, professora de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a selecionar poemas "indispensáveis" do itabirano.

Maria Zilda é autora de diversas publicações sobre Drummond e, inclusive, já entrevistou o escritor, que morreu em 1987.

Festival Literário de Itabira celebra Drummond no ano em que o escritor completaria 120 anos

Veja os poemas:

Poema de Sete Faces

"Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo."

De acordo com a professora Maria Zilda, o "Poema de Sete Faces" abriu o primeiro livro de Drummond, "Alguma Poesia", publicado em 1930.

"Considerado poema inaugural, muito embora Drummond já houvesse publicado em jornais e revistas muitos poemas, de fato este texto já marca, de saída, a explicitação de uma poética, de um quase projeto literário em que o poeta se apresenta 'oficialmente' no campo literário", disse.

Segundo a professora, essa apresentação explicita a inadequação do sujeito poético no mundo e na sociedade.

"Embora com quebrada pelo humor e pela ironia, a situação de isolamento e solidão do sujeito lírico é posta em relevo, bem como a perplexidade diante da vastidão do mundo que não logra abarcar com seu verbo, o que redunda no seu fracasso e desamparo", explicou.

O elefante

"Fabrico um elefante

De meus poucos recursos

Um tanto de madeira

Tirado a velhos móveis

Talvez lhe dê apoio

E o encho de algodão

De paina, de doçura

A cola vai fixar

Suas orelhas pensas

A tromba se enovela

E é a parte mais feliz

De sua arquitetura

Mas há também as presas

Dessa matéria pura

Que não sei figurar

Tão alva essa riqueza

A espojar-se nos circos

Sem perda ou corrupção

E há por fim os olhos

Onde se deposita

A parte do elefante

Mais fluida e permanente

Alheia a toda fraude

Eis meu pobre elefante

Pronto para sair

À procura de amigos

Num mundo enfastiado

Que já não crê nos bichos

E duvida das coisas

Ei-lo, massa imponente

E frágil, que se abana

E move lentamente

A pele costurada

Onde há flores de pano

E nuvens, alusões

A um mundo mais poético

Onde o amor reagrupa as formas naturais

Vai o meu elefante

Pela rua povoada

Mas não o querem ver

Nem mesmo para rir

Da cauda que ameaça

Deixá-lo ir sozinho

É todo graça, embora

As pernas não ajudem

E seu ventre balofo

Se arrisque a desabar

Ao mais leve empurrão

Mostra com elegância

Sua mínima vida

E não há na cidade

Alma que se disponha

A recolher em si

Desse corpo sensível

A fugitiva imagem

O passo desastrado

Mas faminto e tocante

Mas faminto de seres

E situações patéticas

De encontros ao luar

No mais profundo oceano

Sob a raiz das árvores

Ou no seio das conchas

De luzes que não cegam

E brilham através

Dos troncos mais espessos

Esse passo que vai

Sem esmagar as plantas

No campo de batalha

À procura de sítios

Segredos, episódios

Não contados em livro

De que apenas o vento

As folhas, a formiga

Reconhecem o talhe

Mas que os homens ignoram

Pois só ousam mostrar-se

Sob a paz das cortinas

À pálpebra cerrada

E já tarde da noite

Volta meu elefante

Mas volta fatigado

E as patas vacilantes

Se desmancham no pó

Ele não encontrou

O de que carecia

O de que carecemos

Eu e meu elefante

Em que amo disfarçar-me

Exausto de pesquisa

Caiu-lhe o vasto engenho

Como simples papel

A cola se dissolve

E todo seu conteúdo

De perdão, de carícia

De pluma, de algodão

Jorra sobre o tapete

Qual mito desmontado

Amanhã recomeço"

Segundo a professora Maria Zilda, "O elefante" integra um dos livros mais importantes do poeta, "A rosa do povo", publicado em 1945.

"O elefante, o canhestro personagem que atravessa a cidade, desconjuntando-se em suas partes feitas de matéria fluida e frágil, funciona como um alter ego do sujeito lírico que nele se disfarça para andar entre os homens. Sua figura 'gauche' e deslocada, imprópria até, não chega a afetar as pessoas entre as quais circula. Com lirismo intenso, embora melancólico, o elefante drummondiano inquire, perplexo, sobre sua função, sobre a função da poesia diante da indiferença do mundo", disse.

A ilusão do migrante

"Quando vim da minha terra,

se é que vim da minha terra

(não estou morto por lá?),

a correnteza do rio me sussurrou vagamente

que eu havia de quedar lá donde me despedia.

Os morros, empalidecidos

no entrecerrar-se da tarde,

pareciam me dizer

que não se pode voltar, porque tudo é consequência de um certo nascer ali.

Quando vim, se é que vim

de algum para outro lugar,

o mundo girava, alheio à minha baça pessoa,

e no seu giro entrevi

que não se vai nem se volta

de sítio algum a nenhum.

Que carregamos as coisas,

moldura da nossa vida,

rígida cerca de arame, na mais anônima célula,

e um chão, um riso,

uma voz ressoam incessantemente em nossas fundas paredes

Novas coisas, sucedendo-se,

iludem a nossa fome de primitivo alimento.

As descobertas são máscaras do mais obscuro real,

essa ferida alastrada na pele de nossas almas.

Quando vim da minha terra,

não vim, perdi-me no espaço, na ilusão de ter saído.

Ai de mim, nunca saí.

Lá estou eu, enterrado por baixo de falas mansas,

por baixo de negras sombras,

por baixo de lavras de ouro,

por baixo de gerações, por baixo, eu sei,

de mim mesmo, este vivente enganado, enganoso."

"A Ilusão do Migrante" integra o livro "Farewell", publicação póstuma. De acordo com a professora Maria Zilda, Drummond deixou o livro pronto, guardado em uma gaveta, para ser publicado depois de sua morte, e o poema "revela o embate do sujeito lírico com a terra natal".

"As várias biografias de Drummond registram a recusa do poeta de voltar à sua cidade natal (Itabira) ou a Belo Horizonte, cidade em que passou sua juventude e em cujas revistas e jornais publicou seus primeiros textos e poemas", disse.

O poeta, inclusive, falou sobre o assunto em entrevista a Maria Zilda.

"Presente em 'A ilusão do migrante', além deste traço biográfico, tem relevo a permanência do território de origem em quem se distancia dele. Por um outro lado, também presente no poema uma dimensão mais ampla da condição do homem como ser em trânsito", afirmou.

Campo de flores

"Deus me deu um amor no tempo de madureza,

quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.

Deus-ou foi talvez o Diabo-deu-me este amor maduro,

e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos

e outros acrescento aos que amor já criou.

Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso

e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia

e cansado de mim julgava que era o mundo

um vácuo atormentado, um sistema de erros.

Amanhecem de novo as antigas manhãs

que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra

imensa e contraída como letra no muro

e só hoje presente.

Deus me deu um amor porque o mereci.

De tantos que já tive ou tiveram em mim,

o sumo se espremeu para fazer vinho

ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa

a tirar sua cor dessas chamas extintas

era o tempo mais justo. Era tempo de terra.

Onde não há jardim, as flores nascem de um

secreto investimento em formas improváveis.

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso

para arrecadar as alfaias de muitos

amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,

e ao vê-los amorosos e transidos em torno,

o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece

na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia

os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura

e o mistério que além faz os seres preciosos

à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,

há que amar diferente. De uma grave paciência

ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia

tenha dilacerado a melhor doação.

Há que amar e calar.

Para fora do tempo arrasto meus despojos

e estou vivo na luz que baixa e me confunde."

Para Maria Zilda Cury, "Campo de Flores" é "um dos poemas que testemunham o mais alto lirismo de Carlos Drummond de Andrade".

"Com a exposição de pares contraditórios que põem em relevo o deslumbramento de um amor no crepúsculo da vida, constrói-se no poema uma reflexão sobre o milagre do amor, como um dom que, embora inesperado como todo dom, desperta sentimentos contraditórios no sujeito lírico", explicou a professora.

 


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