Nesta segunda-feira (31), dia em que Carlos Drummond de Andrade completaria 120 anos, o g1 convidou Maria Zilda Ferreira Cury, professora de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a selecionar poemas "indispensáveis" do itabirano.
Maria Zilda é autora de diversas publicações sobre Drummond e, inclusive, já entrevistou o escritor, que morreu em 1987.
Festival Literário de Itabira celebra Drummond no ano em que o escritor completaria 120 anos
Veja os poemas:
Poema de Sete Faces
"Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo."
De acordo com a professora Maria Zilda, o "Poema de Sete Faces" abriu o primeiro livro de Drummond, "Alguma Poesia", publicado em 1930.
"Considerado poema inaugural, muito embora Drummond já houvesse publicado em jornais e revistas muitos poemas, de fato este texto já marca, de saída, a explicitação de uma poética, de um quase projeto literário em que o poeta se apresenta 'oficialmente' no campo literário", disse.
Segundo a professora, essa apresentação explicita a inadequação do sujeito poético no mundo e na sociedade.
"Embora com quebrada pelo humor e pela ironia, a situação de isolamento e solidão do sujeito lírico é posta em relevo, bem como a perplexidade diante da vastidão do mundo que não logra abarcar com seu verbo, o que redunda no seu fracasso e desamparo", explicou.
O elefante
"Fabrico um elefante
De meus poucos recursos
Um tanto de madeira
Tirado a velhos móveis
Talvez lhe dê apoio
E o encho de algodão
De paina, de doçura
A cola vai fixar
Suas orelhas pensas
A tromba se enovela
E é a parte mais feliz
De sua arquitetura
Mas há também as presas
Dessa matéria pura
Que não sei figurar
Tão alva essa riqueza
A espojar-se nos circos
Sem perda ou corrupção
E há por fim os olhos
Onde se deposita
A parte do elefante
Mais fluida e permanente
Alheia a toda fraude
Eis meu pobre elefante
Pronto para sair
À procura de amigos
Num mundo enfastiado
Que já não crê nos bichos
E duvida das coisas
Ei-lo, massa imponente
E frágil, que se abana
E move lentamente
A pele costurada
Onde há flores de pano
E nuvens, alusões
A um mundo mais poético
Onde o amor reagrupa as formas naturais
Vai o meu elefante
Pela rua povoada
Mas não o querem ver
Nem mesmo para rir
Da cauda que ameaça
Deixá-lo ir sozinho
É todo graça, embora
As pernas não ajudem
E seu ventre balofo
Se arrisque a desabar
Ao mais leve empurrão
Mostra com elegância
Sua mínima vida
E não há na cidade
Alma que se disponha
A recolher em si
Desse corpo sensível
A fugitiva imagem
O passo desastrado
Mas faminto e tocante
Mas faminto de seres
E situações patéticas
De encontros ao luar
No mais profundo oceano
Sob a raiz das árvores
Ou no seio das conchas
De luzes que não cegam
E brilham através
Dos troncos mais espessos
Esse passo que vai
Sem esmagar as plantas
No campo de batalha
À procura de sítios
Segredos, episódios
Não contados em livro
De que apenas o vento
As folhas, a formiga
Reconhecem o talhe
Mas que os homens ignoram
Pois só ousam mostrar-se
Sob a paz das cortinas
À pálpebra cerrada
E já tarde da noite
Volta meu elefante
Mas volta fatigado
E as patas vacilantes
Se desmancham no pó
Ele não encontrou
O de que carecia
O de que carecemos
Eu e meu elefante
Em que amo disfarçar-me
Exausto de pesquisa
Caiu-lhe o vasto engenho
Como simples papel
A cola se dissolve
E todo seu conteúdo
De perdão, de carícia
De pluma, de algodão
Jorra sobre o tapete
Qual mito desmontado
Amanhã recomeço"
Segundo a professora Maria Zilda, "O elefante" integra um dos livros mais importantes do poeta, "A rosa do povo", publicado em 1945.
"O elefante, o canhestro personagem que atravessa a cidade, desconjuntando-se em suas partes feitas de matéria fluida e frágil, funciona como um alter ego do sujeito lírico que nele se disfarça para andar entre os homens. Sua figura 'gauche' e deslocada, imprópria até, não chega a afetar as pessoas entre as quais circula. Com lirismo intenso, embora melancólico, o elefante drummondiano inquire, perplexo, sobre sua função, sobre a função da poesia diante da indiferença do mundo", disse.
A ilusão do migrante
"Quando vim da minha terra,
se é que vim da minha terra
(não estou morto por lá?),
a correnteza do rio me sussurrou vagamente
que eu havia de quedar lá donde me despedia.
Os morros, empalidecidos
no entrecerrar-se da tarde,
pareciam me dizer
que não se pode voltar, porque tudo é consequência de um certo nascer ali.
Quando vim, se é que vim
de algum para outro lugar,
o mundo girava, alheio à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi
que não se vai nem se volta
de sítio algum a nenhum.
Que carregamos as coisas,
moldura da nossa vida,
rígida cerca de arame, na mais anônima célula,
e um chão, um riso,
uma voz ressoam incessantemente em nossas fundas paredes
Novas coisas, sucedendo-se,
iludem a nossa fome de primitivo alimento.
As descobertas são máscaras do mais obscuro real,
essa ferida alastrada na pele de nossas almas.
Quando vim da minha terra,
não vim, perdi-me no espaço, na ilusão de ter saído.
Ai de mim, nunca saí.
Lá estou eu, enterrado por baixo de falas mansas,
por baixo de negras sombras,
por baixo de lavras de ouro,
por baixo de gerações, por baixo, eu sei,
de mim mesmo, este vivente enganado, enganoso."
"A Ilusão do Migrante" integra o livro "Farewell", publicação póstuma. De acordo com a professora Maria Zilda, Drummond deixou o livro pronto, guardado em uma gaveta, para ser publicado depois de sua morte, e o poema "revela o embate do sujeito lírico com a terra natal".
"As várias biografias de Drummond registram a recusa do poeta de voltar à sua cidade natal (Itabira) ou a Belo Horizonte, cidade em que passou sua juventude e em cujas revistas e jornais publicou seus primeiros textos e poemas", disse.
O poeta, inclusive, falou sobre o assunto em entrevista a Maria Zilda.
"Presente em 'A ilusão do migrante', além deste traço biográfico, tem relevo a permanência do território de origem em quem se distancia dele. Por um outro lado, também presente no poema uma dimensão mais ampla da condição do homem como ser em trânsito", afirmou.
Campo de flores
"Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus-ou foi talvez o Diabo-deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.
Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.
Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.
Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.
E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.
Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.
Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.
Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde."
Para Maria Zilda Cury, "Campo de Flores" é "um dos poemas que testemunham o mais alto lirismo de Carlos Drummond de Andrade".
"Com a exposição de pares contraditórios que põem em relevo o deslumbramento de um amor no crepúsculo da vida, constrói-se no poema uma reflexão sobre o milagre do amor, como um dom que, embora inesperado como todo dom, desperta sentimentos contraditórios no sujeito lírico", explicou a professora.