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03/03/2023 às 07h49min - Atualizada em 03/03/2023 às 07h49min

Opinião - Sérgio Rodrigues: Paranoia pode matar debate sobre palavras que guardam marcas de racismo

Conhecimento mais verdadeiro da etimologia é saudável para o ambiente

Sérgio Rodrigues
Folha Uol
Silvis

 

Deve-se evitar a frase "fazer do limão uma limonada". Sob a casca da inocência se esconde o sumo de uma odiosa expressão racista: no Nordeste brasileiro dos séculos 18 e 19, "limão" era o apelido do jovem escravizado que, altivo e "amargo", não se curvava à vontade arbitrária do feitor. "Fazer uma limonada" era pô-lo no tronco para ser chicoteado até se dobrar.

Quantos leitores terão suspeitado que o parágrafo acima é pura mentira, invenção descabelada que o colunista acaba de tirar de uma região recôndita de sua anatomia?

Não muitos, a julgar pelo sucesso feito nos últimos anos por versões igualmente fantasiosas que tentam colar a pecha de racismo em expressões como "nas coxas" e palavras como "criado-mudo".

Que tal esta outra história? A expressão "encher o bucho", que significa comer até se fartar, refere-se a uma prática nefasta: o trabalhador escravizado das minas só ganhava o direito de comer depois que conseguisse encher de ouro um buraco na parede chamado bucho. Uau.

A potoca do limão é mais verossímil. Na vida real, bucho é uma palavra do século 14 que significa estômago, barriga, o que basta para explicar a expressão "encher o bucho" com gloriosa simplicidade.

No entanto, anda mais difícil desmentir essa historinha desde o mês passado, quando um dos participantes do Big Brother Brasil, MC Guimê, chamou a atenção de outro morador da casa, um certo Cara de Sapato, por usar a expressão.

Como costuma ocorrer em tais casos, dá-se de barato que o ofendido tenha razão. O que move a coluna a entrar nesse terreno minado não é tanto o impulso de expor caôs, embora um conhecimento mais verdadeiro da etimologia seja saudável para o ambiente.

A ideia é entender o que essas fake news etimológicas, que tudo indica serem fabricadas com deliberação e método, estão dizendo sobre o modo como nos comunicamos.

Quem quiser pesquisar por que "nas coxas" e "criado-mudo" são inocentes encontrará boas fontes na internet, inclusive um longo artigo que publiquei na Ilustríssima em novembro de 2021.

Encontrará também, e com mais facilidade, exemplos da alegre indignação com que essas mentiras são denunciadas por ultraconservadores empenhados em interditar todo debate sobre as marcas deixadas na língua por séculos de preconceitos.

Eu, que depois de deliberar com meus botões decidi cortar do caderninho, há anos, verbos como judiar (abertamente antissemita) e denegrir (que nada tem de racial em sua origem, mas parece muito ter, o que para mim é suficiente), não quero interditar nada. Muito pelo contrário.

Acredito que a linguagem, da mesma forma que o pacto social como um todo, seja fundada em relações de confiança. Que essas relações andam abaladas em nossa sociedade é evidente. Daí a trabalhar para esculhambá-las ainda mais...

Parte de uma reavaliação mais ampla dos cacoetes sociais iníquos deixados por séculos de história violenta, o debate sobre as vilezas que as palavras podem trazer embutidas –e desse modo, mesmo sem querer, perpetuar– é sério e importante demais para ser dominado por uma lógica paranoica e delirante.

Não, não é correto afirmar que "azul de fome" seja a expressão-símbolo de uma campanha desumana, popular na segunda metade do século passado, para que o público nunca alimentasse os Smurfs, deixando-os morrer de inanição.

Afirmar a falsidade do falso deveria interessar a todo mundo que gosta da verdade.

Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

 

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